sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Os dois extremos do infinito

"O céu, que é perfeito,
andou jogando em seus olhos
o dom do infinito." Humberto del Maestro



Os dois extremos do infinito

Outrora tive o azul como infinito, afinal era o céu, o mar, além do exemplar anil e, perfeitamente esférico, da hortência que cultivava. O novelo índigo veio de certa feita a esvair-se, decidira partir, e o perfume antes exótico, passou então a nostálgico, mas, fora a partida, aquela flor sempre me passara vitalidade, e por isso a fiz eterna.
No entanto, a certo fim de estação me atrevi a rimar coisas do céu e também versifiquei de pés nus alguns devaneios marinhos que me eram confessados na hora exata em que a onda vinha exibir-se. Aí o celeste foi deixando de ser perene, pois percebi que já o alcançava com minhas palavras que, apesar de bonitas, eram fracas. Além disso, eu encontrei as ovelhas, que eram para mim nuvens querendo compartilhar da calma do céu na terra, e quando as toquei, o céu não era mais inalcançável. Quanto às minhas hortências, as vi sendo entregues como prova de amor e, dessa forma, também se privaram do encanto.
Aí me pus a chorar, já era embaçada a vista, e senti como se falhasse algum degrau na descida da escada. E as pálpebras não eram lubrificadas pela perda da certeza, mas pela dúvida de novas alegrias, que eu só encontrava nas minhas inexistências (porque os infinitos são particulares).
E agora que era tudo mais banal e grotesco, e do sublime pouca coisa se extraía, seria quase a morte ir à busca de algo amorfo, incolor e insípido e sem ciência alguma na constituição. O poeta que topasse tal aventura poderia partir desnudo de sua sensibilidade porque de nada ela serviria. E eu que não fui poeta e muito menos sensível nem me dispus à caça e, talvez por isso, tenha me tornado exímio caçador quando jamais quis ter a presa.
E o céu e o mar e a hortênsia novamente a me testar. Riam-se da minha astúcia, se é que a tinha, o que era de duvidar. E de novo compus aos céus, fiz novas baladas ao mar e dei eu as flores, não como prova, mas um simples agrado de amar. E espantosamente tudo então fez-se infindo, intocável, divino demais pra ser meu.
E a diferença estava nos números que, ironicamente, garantem o não findar das coisas. Pois a abóbada à que rimei era manto de duas nucas, e as ondas que eu embalei regavam exatos quatro pés. Quanto às flores, essas murcharam, mas ainda assim coube nelas algo não cabível nas palavras e, por esse motivo, só por esse, eu as refiz eternas. Procurei ainda as ovelhas e quis ser delas o guardador, um guardador de rebanhos posto que sou. Quis abraçar todas elas, mas apesar de serem poucas, eram intermináveis, e aí compreendi que o que dizem ser relativo é na verdade um só diante de vários.
Ou seja, sob um ponto de vista somos capazes de relatar o céu. Sob dois pontos de vista fazemos poesia com ele.

O Guardador de Rebanhos – 20/12/07

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A uma moça que merece versos

A menina me ensina,
Como um velho sábio,
O quanto sou menino. Adaptado de Alice Ruiz



A uma moça que merece versos

A noite já te faz verso no indeciso soprar da vela.
Peço-te que não esforces no reavivar da chama,
Deixa que queimem quimeras, fumegantes paixões quotidianas,
Restemos apenas nós dois e o tímido amor que somente um ama.

Tal borboletas que (a)traem, frias, as flores,
Perambulei eu entre almas que, de tão moças,
Deram-me de beber bálsamos de falsos amores.

De outras belezas vãs, desfez-se, ali, meu cerne,
Inquieto a pulsar.
E por mais que fugisse a meus olhos tristes,
Enamorada, minh’alma teimava no teu olhar.

Eras tu.
Dessa flor tão recatada jamais me confundiria.
Abundam-se versos de amor, faz-se escassa a elegia.
Ouves tu a natureza?! As liras que ela te canta?!
Atenta cuidadosa a ti!
Onde intentas buscar mais graça, viveza e poesia tanta?!

Eras pálida e de beleza medida.
Esmaecida! Mesmo em face de maior alvura.
E nos olhos tinha tanto! Eram-me, na verdade, um livro.
Páginas, centenas delas em branco.
Lábios rosados. Palpitando ao frio que também senti.
Intocáveis!
Haveria crime mais doce se imprimisse meu nome ali?!
E os cabelos temiam-me as mãos.
Novelos outonais d’onde caíam as folhas que abraçavam o chão.
Dali brotariam meus medos
E todas as sensações que tenho quando te (em)presto atenção.
E no andar, assim como noutros gestos,
Há um não sei quê de doçura,
Quê que emudece o ar.

Talvez um dia tudo se extinga,
Tal a chama que eu mesmo apaguei.
Mas os ventos serão constantes
E as noites sempre virão.
E se acaso te afogue o peito
Saudade de amor que teve
Não apenas deste escrivão,
Segura aos versos que te compus chorando
Em alívio a meu peito,
Ao pesar de meus sonhos.

As flores que te dei um dia
Não têm a mesma melancolia
Dos versos que hoje te dou.
Não te preocupas com rimas.
Meus amores foram sempre impossíveis.

O Guardador de Rebanhos - 17/11/07

terça-feira, 16 de outubro de 2007

À minha eterna Polegarzinha

" [...] A andorinha voou até lá abaixo com a Polegarzinha e poisou-a numa pétala. Então, a Polegarzinha teve uma grande surpresa. Ali, no centro da flor, estava um principezinho, tão belo e delicado que parecia feito de vidro. Tinha na cabeça a coroa de ouro mais bonita que pode imaginar-se e nos ombros um par de asas coloridas e brilhantes, e não era maior do que a própria Polegarzinha. Era o espírito que guardava a flor. Em cada flor havia uma criaturinha igual, mas ele era o rei de todas.
— Que bonito que ele é! — sussurrou a Polegarzinha à andorinha.
O principezinho ao princípio ficou muito assustado com a ave, que lhe parecia gigantesca, mas quando viu a Polegarzinha ficou cheio de alegria. Achou que ela era a mais bela de todas as criaturas que jamais tinha visto, mesmo entre as fadas das flores. Tirou a coroa de ouro da sua cabeça e colocou-a na dela e perguntou-lhe como se chamava e se queria ser sua mulher e rainha de todas as flores. [...]"

A Polegarzinha, um conto de Hans Christian Andersen.






Ainda te amo

E pensar que tudo era tratado de modo tão fácil, trivial. Nos acostumávamos com o automático, como se não tivéssemos escolha, e não passávamos de fantoches, obedecendo o roteiro e o mecanismo propostos.E tudo o que nos passava era alheio, sem mérito de atenção. E assim nos dizíamos sábios.
Eis que ela me vem aos poucos, e mostra-me com uma permissão que não lhe foi dada, que o mais importante é tornar-se inexperiente a cada dia. Diz-me que toda a minha sagacidade é, na verdade, o que mais consome minha sabedoria e que dessa sabedoria posso desfazer-me no primeiro enlace das mãos. Aconselha que devo ter inúmeras infâncias e querê-las cada vez mais. E me olha, me falando com esse olhar... E me ri, contando-me segredos nada convencionais... E me chama por um nome que nunca tive, mas que no fundo sempre quis ser chamado.
E do primeiro encontro o mundo se lembra. Está lá, eternizado na música que posteriormente será rabiscada nas cartas, nas bocas, nos olhos dos dois: “Nos encontramos à noite, passeamos por aí. E no lugar escondido, outro beijo lhe pedi”. E na solidão que vivíamos a dois, a lua era mesmo prateada, as estrelas desciam ao chão e fora a única vez em que tivemos a certeza de que não sonhávamos.
E desde então tudo passa a ser novo. É desconhecido, motivo de mistério. E ela me ensina as primeiras palavras, me dá a mão nos primeiros passos, me levanta das quedas e me aperta com força. E é tudo a primeira vez. Me perco no cálculo das primeiras vezes em que a beijei, das primeiras palavras que lhe disse, dos primeiros segredos que revelei e dos primeiros medos que escondi.
E eu já faço poesia, desenhos infantis, juras eternas com a absoluta certeza de que irei cumpri-las. E eu já passo horas comigo, deitado em qualquer lugar com os olhos fitando qualquer coisa, pois não são mais eles que vêem. E já me chamo de bobo, e só por isso penso ser sábio demais. E quero dizer infinitas vezes que ela é a mais amada, a mais pensada, e que as nossas crianças terão o nome que ela quiser: se menina, Antônia, e o menino Guilherme, desde que sejam nossos. E, por incrível que pareça, todas as músicas foram escritas pra nós, todos os filmes nos lembram histórias e, assim, juntos, duvidamos de amor maior.
E as ânsias agora são prazeres. Deixamos as unhas de lado e agarramos qualquer pelúcia. Esguichamos qualquer fragrância, desde que ela esteja cada vez mais perto.
E de mãos dadas entendemos a relatividade e, como num pacto digno de enamorados, quebramos juntos nossos relógios, porque eles já não acompanham o nosso tempo.
O silêncio já não é mais entediante. E as madrugadas não causam mais sono. E durmo só para sonhar com ela, com absoluta convicção na previsão dos sonhos. E pouco depois já desperto, com medo de perder um mínimo de tempo.
E a fala que planejei antes de dormir, os versos que decorei e os olhares que programei, tudo vai embora à hora em que ela me vem. E eu não sei o que é feito de mim quando ela me olha. Se ela me toca, desfaleço. E quando me abraça, enfraqueço.
E eu queria mesmo que ela não fosse como as outras. Desejei que ela chegasse primeiro. E quis ser eu o primeiro amor dela.
E agora está tudo feito. Não há meios de regressar.
Por mais que Vinícius seja esquecido e que seus sonetos deixem de inspirar os casais, ainda assim te amo.
Pode o romantismo tornar-se careta e acharem ser masoquismo essa coisa de amor, mesmo com isso, continuo te amando.
Posso ficar horas chorando e me perder em soluços. Te amo.
E se a nossa música deixar de tocar, e se só o sono não me bastar para dormir, mesmo assim vou te amar.
Ainda que me peça para parar e que eu me esforce, nem que seja para tentar. O tempo esgotou-se, agora está feito, não há meios de regressar.
Era essa a história que desejava escrever, e desde as primeiras linhas a fiz assim, eterna.
Passem-se horas, dias, meses, anos, passe a vida. Ainda te amo.
Perdão, mas assim são os amores, inevitáveis.

O Guardador de Rebanhos – 14/10/07

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A responsabilidade de ser amado


"Os amigos que tens e cuja amizade já puseste a prova, engancha-os a tua alma com ganchos de aço." William Shakespeare




A responsabilidade de ser amado

É bem verdade que amar compete cuidados, doação cautelosa, curiosidade medida, inspiração regrada. Tem de ser jardineiro o amante: há de cuidar para que não seque o amor; ser prudente no rego, sem o encharque da flor; delicado no toque, para que não lhe caiam pétalas, não lhe consumam as aflições da dor; ser prudente no cheiro, sem tirar-lhe o calor. Enfim, há de ser zeloso no amor.
Ainda assim, maior compromisso é ser amado. Cuidar do amor dos outros é dever complicado. Há de ser mais cuidadoso e infindas vezes mais delicado. Há de ser mãe o amado: ter sempre um colo pra cria, nas tantas vezes ao dia quando lhe chega chorando, cansado; banhar sempre que preciso, mesmo se não lhe vem o riso, encoberto na sujeira em que é camuflado; cuidar de alguns machucados quando depois de alguns empurrões, jaz no chão, tombado. Enfim, mais zeloso há de ser quem tem do amor do outro o cuidado.
O que é dos outros te exige mais. És tu o responsável por um coração que no momento bate, mas basta o negares que o pulso logo se desfaz.
Tenho eu um amor desses. Um amor que, a meu modo, amo, mas me chora não podê-lo amar. Ele que me vem sempre em palavras, cheiros, imagens, e nunca se deixa tocar. Talvez nunca nos tenhamos, mas enquanto ele me ame, estarei eu por ele a olhar. Só peço a ele que viva, ame outros se precisar. Haverá ainda o dia em que os caminhos se encurtam, aí então ele me vem buscar.
Peço-te desculpas, amor que tenho, se não venha eu a roçar teus lábios, beijar-te do modo que desejar. Perdão que não acaricie tua face, não seque tuas lágrimas, não te aperte no peito na hora exata em que me clamar. Desculpa-me se te vá sempre em vocábulos, mas são eles verdadeiros, há vezes em que o vento os leva, nas outras não consegue chegar. Não sentir teu cheiro em ti, não ter contigo ao teu lado, não beber do canto por ti cantado é pra mim um triste pesar. Fazer nada junto de ti e assim ficarmos, como outros amantes, um com o outro, fazendo cócegas no ar. Entristecido fico por não sentir a dor que faz teu peito queimar.Enfim, perdão te peço, amor que tenho, se, a meu modo, amo-te e não posso te amar.

O Guardador de Rebanhos - 08/10/07

O Guardador dos meus Rebanhos


E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, [...] (Alberto Caeiro)



O Guardador dos meus Rebanhos

Viver uma vida a bordo não me parece tão fascinante. Sempre na proa, à espera do vento que de tão parelho faz-se aristocrático.
Mais excitante é vivê-la sem linhas.
Ora, pois se deixar o cais é preciso, distanciar dos alvos lenços a balançar, o deixemos como o poeta, eternamente escravo do seu verso, trabalhando por ele todas as horas que tem, nunca a espreitar o fim, pois sabe que tudo finda assim que a estrofe termina. E que triste é o findar do poeta quando todos os versos, escandidos ou não, na arrogância de suas rimas, preferem a interpretação da humanidade à doação do artista.
Mas bem sabe ele que a poesia é do mundo. Das mentes que a quiserem, das mãos que a amassarem, das gavetas que lhe abrigarem. Escondê-la não é possível, assim como é impossível a mim, esconder do papel essas palavras que lhe pulam.
A bordo tudo é mais sério, e o poeta acha graça das cousas. Conversa com tudo sem saber se tudo lhe entende ou menos se entende algo. Faz cócegas nas flores e ri dos risos delas. Foge a esconder-se do vento e se debruça no parapeito de uma janela que é o mundo.
Vê rimas na beleza, porque tudo que é belo é digno da sua poesia.
Encontra o verso onde quer que ele esteja:
Nos olhos rasgados daquela moça, logo acima da sua boca encerrada, ambos pintados sobre o pálido fundo.
Numa água que corre sei lá para aonde e nem de onde vem.
As outras gentes têm violões, pianos e flautas, o poeta é apenas ouvidos à natureza.
Dá risada quando não pode, e se as pessoas acham graça, prefere não rir.
Engana as palavras e aqueles que as lerem.
Ama todas as mulheres do mundo e nenhuma delas é capaz de amar-lhe.
Tem pesar dos outros poetas que empilham seus versos, jogando-os na folha como lhes vem. Não são esculpidos, esquecem-lhes o rego, alguns são rimados e outros quebrados, a maioria nem sentido tem. Ele é, de fato, o jardineiro que me faltava. Não cria a sua poesia, mas a faz brotar. E as estrofes florescem quando as flores germinam. E árvores há também, das quais sai roubar os frutos e, como que provocando, os prova ali mesmo, ao pé dos caules robustos.
A idade do meu poeta é sempre o seu dia, e a altura que tem são os olhos que dizem, e pesa quanto pesam as rimas.
Desperta desconhecendo tudo o que vê e já vai se rindo do sol, que nem bem surgiu, mas deixou os dedos por sobre o muro, que logo em breve vai escalar. E várias são as primeiras vezes, e é por isso que é poeta sempre, e a poesia está em tudo que enxerga.
A morte nunca lhe vem, porque é o que seus versos são, e a eternidade dos versos não lhe deixa fugir daqui.
É por isso que não gosto do bordo.Prefiro essa vida quotidiana de poeta e assim quero vivê-la, não para não morrer, mas para poder estar sempre vivo.
.
O Guardador de Rebanhos - 06/10/07

sábado, 6 de outubro de 2007

E muitas são as vezes em que penso ser eu, embora engatinhando sobre as palavras, a prova maior de que a poesia é feita de momentos.

O Guardador de Rebanhos

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Divina Tolice

“Aonde está você agora além de aqui, dentro de mim?” Renato Russo


Divina Tolice

Hoje,
Sugando as últimas estrelas do céu de minha infância,
Beijaram-me os beijos de todos os encontros.
Roçaram-me os lábios, não apenas lábios,
Mas mais, muito mais!
Lembranças futuras,
Desejos, que de tão íntimos,
Fazem-se irracionais,
Ao ponto que à alma, são ingenuamente fatais.

Visitaram-me todas as noites
Em que fomos nada,
Senão um ao outro.
Noites nossas, de ninguém mais!
Nas quais sonhei ao calor dos teus gestos.
Noites, que por noites, foram belas,
Hoje,
Sempre,
Nunca mais!

Acenaram-me os lenços de todas as partidas.
Nunca despedidas!
Alvos lenços.
Brandos, tristes, poetas, tantos!
Ficavam chorando lá no cais,
Enquanto eu aqui chorava,
Em meio a loucos, poucos e, de repente,
Ninguém mais.

É tudo tão ridículo, tão mesquinho.
E há de ser, mesmo, assim.
Há de ser antes e agora, amor,
Pra qualquer tolo,
Inclusive pra mim.

Hoje,
Sugado pela última estrela
Daquele mesmo céu de minha infância,
Tirei-te daqui de dentro e te abracei,
Devolvi teus sonhos, te amei.
Guardei-te novamente e respirei,
Sem o receio de não viver tudo outra vez.

O Guardador de Rebanhos - 23/07/07

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Terra dos Poetas

Aproveitando-me do ar cultural e poético que infla o município nesses dias, dedico esta postagem à inspiradora Terra dos Poetas e seus filhos.

Se os destinos são imprevisíveis, as origens são inegáveis.


De um poético Boqueirão

Se é dos poetas, de fato, essa terra,
Há de brotar nela um encanto,
O espetáculo que só a palavra encerra.
Semeada há de ser entre o pasto
A poesia de alcance tão vasto
Quanto o grito que incendeia a guerra.

É dentre tantas, a preferida do pago.
Das noites mornas, regadas por São Tiago.
Da brisa virgem, há não muito minuana,
D’onde a rima tímida emana
Entre um sugo e outro do amargo.

Há um orgulho que ferve do chimarrão,
Embebedando carne, alma e coração,
Desde os tempos dos carreteiros
Até os atuais mensageiros,
Ventos que rasgam o Boqueirão.

São estas ruas que se entrelaçam,
Os tantos versos que se abraçam
Na ânsia da redondilha,
Que desce mansa a coxilha
Enquanto os anos lhe passam.

O apego a terra em que acampa,
A marca que nela estampa,
É isso que me convence
Da diferença do santiaguense
Pras outras gentes do pampa.
.
O Guardador de Rebanhos - 30/09/07

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Da cegonha ao sexo

Da cegonha ao sexo
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Eram duas crianças de riso natural. Inocentes, as mãos se enlaçavam. Eram, na hora que tinham, felizes, e não havia meios de não o serem, afinal eram crianças, tinham com elas suas infâncias, até então seu único passado e mais provável destino.
Há alguns passos estava o adulto. A gente grande que lhes era entre todas, a favorita. E os passos, sem que se pudesse contar, faziam-se cada vez menores. Se antes eram poucos agora se reduziam ainda mais. De um lado, nas alturas, era visível a pressa. Já do outro, quase que preso ao chão, nada além do deslumbre, fascínio e encantamento. Abaixo se alargava o riso que acima já se escondera há tempos. Nas mentes menores, mil desejos, que na maior cediam às obrigações. Eis que passa, como calafrio, o adulto pelos pequenos. Nada notara daquela infantilidade, como que ignorando a infância que um dia teve.
E há de ser tudo assim mesmo. Os anos que nos pesam na face nos pesam também nos sonhos, anseios, prioridades e reflexões.
Eis então que paramos, orgulhosos desses anos. Paramos a nos notar, a percebermos que a dor era muito menor quando podíamos lavá-la em pranto no colo de nossas mães.
Nos tocamos que as horas eram muito mais interessantes quando não as contávamos.
Notamos que economizávamos um tempão ao limparmos o nariz com a manga direita da blusa. Blusa que você mesmo escolheu, e não o mundo. Mundo que não passa da pracinha da esquina, mas que ainda assim é o maior e melhor do mundo.
Atentamos para o fato de que era muito mais legal quando víamos um “bichinho” ao invés de um artrópode pertencente à classe dos insetos.
Vemos que nossos inimigos da escola eram, na verdade, grandes companheiros se os compararmos aos nossos atuais colegas de trabalho.
Competir a um balanço era muito mais saudável que concorrer a um cargo na empresa ou brigar por uma vaga no estacionamento.
As histórias que nos eram contadas eram muito mais divertidas àquelas que os jornais nos trazem agora.
Sentimos que a bola torna-se chata quando transformada em esfera, e nos impressionamos ao descobrir que os homens também choram, até mais que as mulheres, ou ainda que só choram de verdade por causa de uma mulher.
Era muito mais prazeroso estudar o perfume e as cores das flores, do que ter de lhes analisar os mecanismos de reprodução. Reprodução esta que tirou o lugar da sementinha e da cegonha.
Confessamos que não era bom temer o bicho-papão, mas recear das pessoas que convivem conosco é, definitivamente, muito pior.
Lembramo-nos da felicidade que sentíamos ao saber que 1 maçã + 1 laranja = 1 piquenique com os amigos, e a comparamos com a indiferença de saber que o mesmo cálculo tem como resposta apenas 2 frutas, em geral transgênicas.
Desvendamos que um grito da mãe ou uma ralhada do pai, ainda que ruins, eram muito melhores do que a indiferença da pessoa que você mais ama no mundo.
Ao final, chegamos à triste conclusão de que fomos desencantados por nós mesmos. Na ansiedade de poder dirigir, beber, namorar, esquecemos da nossa criança. E agora ela nos fita encantada, e nós, nem para um beijo paramos.
Os adultos fazem de tudo para abandonar suas infâncias. Criam versões fajutas para o esconde-esconde e o pega-pega; vêem seus filhos como algo que têm, e não como aquilo que já foram; fazem questão de negar o Papai-Noel e o Coelhinho da Páscoa, além de achar tudo muito mais fácil do que roubar o doce de uma criança.
Chorem minhas crianças! Chorem porque um dia vocês serão exatamente assim, nem melhores nem piores. Verdadeiros monstros!
Neste momento, tudo o que mais quero é alcançar a mão à minha criança, que me olha e me pede com esse olhar.
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O Guardador de Rebanhos - 28/07/09

domingo, 16 de setembro de 2007

O Pequeno Príncipe

Hoje, dotado de incalculável sabedoria, dediquei parte de meu dia à releitura da obra "O Pequeno Príncipe", do genial Antoine de Saint-Exupéry. Na semana que passou, assistindo ao Jornal Nacional, acompanhei a reportagem referente à XIII Bienal do Livro do Rio de Janeiro, onde ocorreu o "lançamento" de uma versão monumental da famosa obra do escritor francês. O livro tem dois metros de altura por um metro e meio de largura e 128 páginas, fato que confere ao Pequeno Príncipe um lugar no Guinness Book, como o maior livro publicado no mundo. Passada a surpresa das dimensões, recordei a primeira vez em que li O Pequeno Príncipe.
Era uma criança (pois infância sem O Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima não é infância), e em meu mundo todo ingênuo e infantil, espreitava cada paço daquele jovenzinho pelos diversos mundos em que andava. Para mim, aquilo era apenas diversão, curiosidade. Mas quando me torno "gente grande" percebo que parte do meu conhecimento não-efêmero adquiri ao folhar as páginas daquele livro aparentemente infantil.
Quantas rosas cativei e quantas outras deixei que partissem sem dar-lhes sequer um olhar. Quantas raposas que me cruzaram o caminho e quantos mundos diferentes visitei e ainda tenho a conhecer. E tudo não passa de valores. Valores que nós, "gente grande", no orgulho de todos os nossos anos, esquecemos de preservar. Cada página folhada daquele livro, independente do tamanho, tem o poder de tocar e engrandecer aquele que a lê.
E hoje eu penso em como fui burro ao deixar todas aquelas lições lá, fechadas junto ao livro da minha infância.
Penso alto, como criança. Penso no mundo maravilhoso que teríamos se cada pessoa que lesse O Pequeno Príncipe colhesse aquela rosa solitária, cativasse a raposa não menos sozinha.
E não há momento melhor para rever esses valores. Devemos aproveitar o relançamento da obra em tamanho colossal para relançar também as virtudes, os conselhos, as morais que existem naquelas folhas.
Gostaria, agora, de compartilhar com você, leitor, um pouco da felicidade de minha infância. Felicidade que, após anos, consigo reviver.




Trecho do capítulo XXI:

"Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar."

Antoine de Saint-Exupéry

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Dança comigo

A pedidos, dedico esta postagem ao texto vencedor do concurso promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Santiago (SMEC) na categoria prosa - Ensino Médio, com a temática "Ética planetária: consciência em humanizar", em comemoração à Semana da Pátria. Gostaria também de pedir ao leitor que não leia meu texto, e sim o pense. Minhas palavras não são escritas para enfeitar, eu quero que elas digam!



Dança comigo

O que vemos, de mãos desenlaçadas, são esperanças desbotadas, velhas quimeras que, mesmo fatigadas, ousam, num último esforço, remar contra a corrente de um rio já poluído por nossa estupidez. São sonhos desestimulados que pairam num céu deserto, que outrora abrigara brancas pombas e agora é manchado pelo negror da ignorância de nossas ações. Nós, com as mãos ainda desenlaçadas, assistimos tudo por sobre a corda bamba, na iminência de cair no abismo criado por nossas atitudes, enquanto o mundo nos fita, esperando que, de mãos dadas, façamos juntos, aquilo que é impossível a um só.
Fazendo uso de tamanha ganância e irracionalidade, acabamos por privar as pessoas de seus direitos inalienáveis que lhes permitem sonhar, viver e desenvolver-se. Devemos respeito à natureza e aos outros, ignorando origem étnica, sexo, posição social ou sistema de crença, fazendo-se valer apenas da cooperação como forma de integrar e evoluir o planeta, regendo com sabedoria essa orquestra da qual somos músicos e maestros.
Além disso, a mudança nos exige muito além do desejo de mudar, da vontade de melhorar, afinal não são devaneios que alterarão os rumos de nossa história. Nossas relações tornam-se cada vez mais conflitantes e o mundo, aos poucos, definha. O gigante, abatido, deve ser reerguido, e a paz deve ressurgir soberana em meio a nossa convivência. A atitude, que implora atenção, precisa ser atendida por todos, que, de braços dados, farão renascer as esperanças há tempos esquecidas.
Então enlacemos as mãos. Devemos emudecer o pranto e fazer bradar o riso, ver o vento embalando e jamais destruindo e as mãos, que antes se negavam, agora devem vibrar unidas. Não deixemos que nossas quimeras se afoguem, que nossos sonhos desistam e que a orquestra desafine, o mundo quer dançar ao som de nosso empenho, não podemos parar o show. Ergamos a batuta e façamos o espetáculo!

João Otávio Cadó de Matos

domingo, 9 de setembro de 2007

Para a Ave sem alas e somente a ela

Caíste do céu, mô bem. E por do céu ter vindo é que és ave sempre. E pela queda é que és desprovida de alas, mas ainda assim tens o vôo, e isso te basta.


Das cinzas, puseste em pulso o cerne do pacato Caval(h)eiro, nobre amiga.
Fênix muscular! Outrora consumido pelo quadro de aflições pintado por ermas e sombrias noites. Hoje, na iminência de furar-me o peito. Vibrante! Vivo!
Que poder têm tuas palavras, jovem pássaro?
Que feitiço as envolve?
E para que ser ave por completo, alada, se teus vocábulos voam até mim e cantam em meus ouvidos?! Ah dama! E como cantam! Serafins celebram a vida diante de tal sonoridade, que nem mesmo Israfel ousou produzir.
Proporcionaste ao Caval(h)eiro cuja armadura cintila, a descoberta de novos mundos, terras onde se sente forte o bastante para ostentar sua espada e defender seu povo, composto por números, palavras, idéias e conceitos.
E quão seguro e inabalável sente-se o jovem, de gládio em punho, na nobre companhia do pássaro, vagando ambos por paisagens que se atreveram a criar, sozinhos, valendo-se apenas um do outro e de suas certezas, muitas vezes incertas.
Cansado, fraco e temeroso da batalha travada em mundo no qual seu coração depôs, o Caval(h)eiro, de súbito, sorri, ao vislumbrar do pé da montanha, o ser sem alas, que apesar de o ser, insiste no vôo, nobre, augusto, pairando soberbo sobre aquele reino de além-mar.
Dos longínquos e ignotos conflitos lutados em nome do verbo, o guerreiro traz apenas a descrença sobre o real poder das palavras. Ao término, vem a ave, como elixir traz a conversa, devolve ao andante a crença, que lhe é necessária na eterna guerra. Ah dama! Que bem o fazes!
Fracos, cobardes e incapazes foram os que outrora temeram os rumos na companhia da nobre amiga. Pois saibas tu, nobre entre os nobres, que onde quer que estejas, terás a ponta da espada deste fiel Caval(h)eiro a te guardar.
Não temas os outros mundos minha amiga, viva apenas o teu! Ouse, tente e não fraqueje ante o mistério! Terás minha espada como lastro!
Agora, curvo-me, em gesto solene, diante da amiga, em agradecimento ao fiel empenho para comigo.
Descanso a espada, pronta a te servir!
Obrigado Ave!
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O Guardador de Rebanhos

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

"A eterna criança, o deus que faltava."

Não há meios de entregar o princípio a um outro, minha criança. "Pois é porque andas sempre comigo que eu sou poeta sempre, e que o meu mínimo olhar me enche de sensação, e o mais pequeno som, seja do que for, parece falar comigo." Adaptado de Fernando Pessoa
Mesmo que tombem nossas estátuas, serás tu, para sempre, a criança que inspira e faz do homem, poeta.
E ao final, quando todos os pergaminhos tiverem sido vitimados por minha pena, verá, o mundo, que minha obra-prima foi amar-te, anjo meu.

“Para fazer uma obra de arte não basta ter talento, não basta ter força, é preciso também viver um grande amor.”
Wolfgang Amadeus Mozart

Soneto

Ode à Letícia

Sensível misto de inocência e de beleza.
Abrilhantado por tão erma e ingênua face,
E a perfeição com que se emprega a singeleza
Faz desta alva mescla, perquirido disfarce.

Branda doçura por detrás de austeros sonhos,
Já denunciada pelo lábio entreaberto,
Em um sorrir, no qual meus olhos eu deponho,
Enlouquecido por tê-lo, de mim, tão perto.

Vem das Madonas de um tal Sanzio, o olhar velado,
Que me deleita, jazendo sobre meu fado,
Que me delata, tal a Virgem, a carícia.

Sempre guardada por fitares celestiais,
Jamais tentada pela fera dos mortais,
É minha amada, pétala alada, Letícia.

O Guardador de Rebanhos – 24/05/07